A crise de fé que vivemos hoje não é caracterizada apenas pela ausência total de crença, mas pela urgência de uma profunda renovação espiritual. Em um mundo marcado por contradições sociais, é evidente que a fé precisa reencontrar suas bases em valores sólidos e em uma resposta clara à vontade de Deus. A modernidade trouxe inúmeras oportunidades, mas também um ambiente de dispersão espiritual, onde o materialismo e o relativismo ocupam espaços que antes eram reservados ao transcendente. Essa desconexão com o essencial conduz muitos à indiferença religiosa, não porque Deus tenha perdido relevância, mas porque o ser humano parece ter se distanciado de seu próprio sentido existencial. Assim, a urgência não está em encontrar uma nova fé, mas em redescobrir o verdadeiro significado daquela que foi recebida, mas, muitas vezes, negligenciada.
Um exemplo que ilustra essa crise é o comportamento social atual. De um lado, celebramos eventos como o “chá revelação”, marcados por extravagâncias e expectativas humanas. Um bolo com recheio colorido ou o lançamento de fumaça tornam-se símbolos de alegria e esperança pela chegada de uma nova vida. No entanto, essa mesma sociedade, muitas vezes, despreza o dom da vida ao apoiar leis que favorecem o aborto. Essa contradição revela uma crise mais profunda: valorizamos o que emociona momentaneamente, mas nos distanciamos da sacralidade da vida como dom de Deus.
Outros aspectos da crise de fé incluem a fragilidade na transmissão dos ensinamentos cristãos e a fragmentação da identidade dos batizados. Em um mundo cada vez mais globalizado e pluralista, é comum que os fiéis percam o senso de pertencimento e as raízes que sustentam a fé. A transmissão da fé às novas gerações enfrenta desafios como a superficialidade na catequese e o impacto de uma cultura que privilegia o individualismo. A catequese, muitas vezes, fica reduzida a um ensino meramente informativo, que carece de uma dimensão vivencial e transformadora. Essa lacuna leva as novas gerações a não apenas questionar os valores recebidos, mas a buscar respostas em contextos alheios à tradição cristã. Além disso, a fragmentação da identidade cristã reflete-se na dificuldade de integrar fé e vida, como se a dimensão religiosa fosse um apêndice separado do cotidiano. Este fenômeno é amplificado por uma sociedade que estimula o individualismo e a autonomia desvinculada da comunhão eclesial, enfraquecendo a experiência comunitária da fé.
Nesse cenário, é significativo recordar o encontro entre Maria e Isabel, narrado no Evangelho de Lucas. Esse momento pode ser comparado a um “chá revelação”, mas com uma diferença fundamental: ele se baseia na sacralidade da vida e na ação divina. Quando Isabel reconhece Maria como “a mãe do meu Senhor” (Lc 1,43), ela não celebra apenas o fato humano de uma gravidez, mas a profundidade espiritual da encarnação de Cristo. Esse exemplo nos desafia a olhar para além das aparências e a redescobrir o valor essencial da vida humana em todas as suas fases.
A chave para sair dessa crise é a acolhida da vontade de Deus. Isso exige uma resposta de fé que se manifesta em palavras e ações concretas. Assim como Maria disse “sim” ao plano de Deus, somos chamados a renovar nosso compromisso com a fé autêntica, que não se limita a ritos ou tradições, mas que transforma nossa vida e nossas relações. Essa acolhida envolve coragem para enfrentar as adversidades e fidelidade para permanecer no caminho da verdade, mesmo quando ele é exigente. Não basta professar uma fé nominal, é necessário encarná-la em gestos de amor, justiça e misericórdia que testemunhem a presença de Deus no mundo. A renovação da fé passa também pela abertura ao Espírito Santo, que nos guia, ilumina nossas escolhas e nos dá a força para perseverar. Em última análise, é na entrega confiante à vontade divina que encontramos a verdadeira liberdade e a plenitude de sentido para nossa existência.
A renovação espiritual não é um simples retorno ao passado, mas um convite a viver a fé de maneira autêntica e contextualizada aos desafios de hoje. A crise de fé é, portanto, uma oportunidade para refletirmos sobre nossas contradições e para renovarmos nossa resposta ao chamado de Deus. Inspirados pelo exemplo de Maria e Isabel, celebremos a vida como dom sagrado que ultrapassa as superficialidades e alcança o coração das pessoas e da sociedade. Esse caminho de renovação passa necessariamente pela escuta da vontade divina e pela vivência coerente dos valores cristãos.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba