A frase “Quem canta reza duas vezes” é atribuída a Santo Agostinho e citada no Catecismo da Igreja Católica. Essa citação é usada para especificar a importância do canto na liturgia; cantar e rezar estão intimamente relacionados. Mas, então, o que dizer das músicas fora do ambiente sacro? Músicas cantadas e repetidas em outro idioma, quando muitas vezes se desconhece a tradução, podem ser má influência? As pessoas estariam fazendo um tipo de oração profana sem saber? Sem entrar pelo caminho de um misticismo ou fanatismo religioso, é preciso considerar que, no mínimo, ideias contraditórias e contravalores vão impregnando e povoando a mente das pessoas, como um pesadelo vestido de sonho.
“Pesadelo vestido de sonho”, aliás, é parte da tradução de uma música interpretada por uma famosa cantora norte-americana em recente turnê no Brasil. Com um público pagante de quase 300 mil pessoas, estima-se que cada evento tenha um rendimento médio de 10 milhões de dólares1, e foram realizados 6 shows em duas capitais, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma das músicas de maior destaque tem o título de “Espaço em branco”. Por analogia, espaço em branco é toda uma realidade a ser construída, uma realidade livre de conceitos pré-estabelecidos, onde os jovens e imprudentes podem passar dos limites. Quais limites?
A música parece recriar o ambiente de um jogo de sedução, onde se experimenta magia, loucura, paraíso e pecado. Tudo parece uma aventura, com uma longa lista de experiências deixadas para trás, de ex-namorados, com cicatrizes. Nesse universo de egocentrismo, ainda há espaço em branco para mais nomes e mais cicatrizes, porém não se fala de amor, ao menos não de amor verdadeiro e comprometido. A busca é pelo prazer a qualquer custo, uma vida feita de momentos e sem compromisso de continuidade, onde tudo pode acabar em chamas e, assim, o jogo poderá recomeçar com outro jogador.
A letra da música reflete a atual superficialidade das relações interpessoais, marcada pela busca do prazer momentâneo, inconsequente e livre de compromissos. Retomando o primeiro questionamento, é preciso considerar a influência não só da letra dessa e de outras músicas, mas a influência dos próprios intérpretes e como a sua capacidade de mobilização reforça a mudança de comportamento social, sobretudo da juventude. O pecado é só mais uma aventura, os relacionamentos são descartáveis e não há limites para a busca do prazer. A mensagem é clara: a vida é um espaço em branco, onde cada um escreve o que bem quiser. Será que é realmente assim?
O subjetivismo apregoado e defendido nos tempos atuais não é inocente e nem imparcial. A verdade é que as decisões pessoais são influenciadas por interesses comerciais e ideológicos, mas também há interesses que vão além daquilo que podemos compreender racionalmente. O mal se esconde nas entrelinhas e sempre foi assim; aliás, “enganador” é um dos nomes que ele recebe. No princípio da decisão pelo pecado está uma dúvida plantada no coração da pessoa humana: a dúvida de não ser amado por Deus e, por isso, o homem busca desesperadamente qualquer sentimento que se pareça com amor, pesadelos vestidos de sonhos.
Não somos um mero espaço em branco ou vazio. Antes, fomos criados à imagem e semelhança de Deus. “Na realidade, o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado [...] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre a sua vocação sublime”2. Só Cristo pode mostrar ao homem quem ele realmente é, sem magia, sem loucura e sem pecado, e aponta para o verdadeiro paraíso. Só Cristo é capaz de caminhar com o homem, não de cima de um palco, mas na vida, para ajudá-lo a escrever a própria história, segundo o projeto divino. Só Cristo nos acompanha sem nos abandonar ou nos enganar; essa é a Verdade que queremos proclamar e cantar, hoje e sempre.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba