A legislação brasileira, regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na resolução de número 14, de 28 de março de 2014, dispõe sobre a tolerância para a presença de corpos estranhos, como areia, ácaros, pelos de ratos e fragmentos de insetos, nos alimentos industrializados. A Anvisa tem essa tolerância, considerando que a porcentagem encontrada é inofensiva para a saúde humana e considerando também que a indústria alimentícia não está completamente blindada e livre da presença desses invasores. No entanto, as embalagens de produtos alimentícios não trazem essas informações.
Os termos sujidade ou sujeira são sinônimos e indicam a qualidade do que é sujo, isto é, daquilo que não está limpo ou isento de contaminação. O objetivo da Vigilância Sanitária é garantir que apenas o mínimo de sujeira seja, eventualmente, encontrado nos alimentos. Embora isso seja uma regulamentação apropriada e uma garantia para a saúde pública, não parece muito agradável pensar que, quando comemos ou bebemos algum produto industrializado, pode ser que estejamos ingerindo fragmentos indesejados e corpos estranhos. Uma quantidade mínima de sujidade não põe em risco a saúde humana, mas para a fé, a sujeira que se mistura com a doutrina é um risco grave.
A sujeira que se mistura com a doutrina vem de muitos lugares e, às vezes, ela surge de forma tão simples e discreta que nem parece um problema. Isso pode acontecer na forma de uma música cantada na celebração, uma pequena modificação nos ritos da liturgia, sob o pretexto de criatividade ou inculturação, uma interpretação mais livre e uma pregação mais “progressista” da Palavra de Deus, alegando misericórdia. Outro problema é a reflexão teológica que se distancia da Palavra, da Tradição e do Magistério, com a pretensão de fazer uma teologia de fronteira, mais próxima da realidade e, por que não dizer, mais humana.
Depois de um tempo, o que antes parecia contraditório e contrário à fé vai se tornando aceitável e vai sendo assumido como progresso e avanço doutrinal, quando na realidade não passa de desvio da Verdade e da Tradição. É claro que é necessário distinguir entre as mudanças autênticas e aquelas que são fruto da vaidade e da especulação humana, semelhante ao que aconteceu com a torre de Babel. O Concílio Vaticano II foi um acontecimento ímpar, com mais de 2.500 participantes no cortejo de abertura, e promoveu uma ampla e necessária reforma em diversas realidades da Igreja. Porém, é preciso reafirmar que o Vaticano II não alterou nem a Doutrina nem a Tradição da Igreja.
Ao longo de sua existência histórica, com mais de dois mil anos, a Igreja tem assumido e incorporado elementos que expressam a beleza da fé e o respeito pelas diferentes culturas. É o que podemos chamar de inculturação legítima. Esse processo inclui a música, os cantos, os gestos celebrativos e tantos outros elementos que passam pela vida do povo, pela reflexão dos teólogos e pela vigilância do Magistério da Igreja. Aqui é preciso esclarecer dois conceitos fundamentais: o primeiro é o conceito de Povo de Deus, que compreende o conjunto dos batizados, incluindo os ministros ordenados, os religiosos e os leigos; o segundo é o conceito do “sensus fidei” ou entendimento da fé, que nasce da experiência cristã, da vida teológica, e permite a compreensão sempre maior do mistério de Deus.
Esse aprofundamento e melhor compreensão da fé é obra do Espírito Santo, que age no povo de Deus. Mas é preciso distinguir que essa ação é distinta no conjunto dos batizados, pois são distintas as funções e responsabilidades. Os batizados são consagrados como povo sacerdotal, profético e real, chamados a celebrar e testemunhar a fé no mundo. Nesse caminho, como discípulos de Jesus, podem aparecer distorções e interpretações equivocadas. Na Carta aos Hebreus, capítulo treze, já se encontra essa precaução: “Não vos deixeis enganar por doutrinas ecléticas e estranhas”. Doutrinas que, às vezes, aparecem sob a forma de direitos, igualdade ou inovação e atualização.
Por isso, o Espírito suscita a vocação do teólogo, subordinada à autoridade do Magistério da Igreja. Enquanto os teólogos ajudam a aprofundar a compreensão da fé, o Magistério exerce a função de vigilância, que garante a pureza e a integridade da fé. Nas coisas da fé, não serve e não pode haver nenhuma porcentagem de erro ou engano. Nas coisas da fé, não pode haver sujidade ou sujeira, não pode haver interpretação subjetiva, pontos de vista pessoais ou “eu acho que seja assim”. Nas coisas da fé, deve haver a clareza da Verdade que realmente liberta o homem do pecado e dos enganos criados pela razão humana.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba