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Crise de valores humanos

Publicado em 2 de outubro de 2023 - 16:02:10

Os telejornais diários trazem notícias de interesse público do contexto nacional e internacional. Mas às vezes aparecem reportagens quase inacreditáveis e extravagantes, que mostram situações de absoluta inversão, ou pelo menos, de confusão de valores. Algumas vezes essas notícias são fake news, notícias falsas, e são desmentidas. Também é de conhecimento geral que nem tudo o que circula nas redes sociais é verdade e, por isso, antes de passar adiante uma notícia ou uma informação, é preciso checar a veracidade daquilo que é postado. Mas realmente há notícias surpreendentes.

Há dois meses, o apresentador de um telejornal deu uma notícia e fez comentários sobre algo que aconteceu do outro lado do mundo, na Austrália. Segundo o apresentador, uma mulher foi chamada na escola da filha, e foi comunicada que a menina tinha piolhos. No entanto, a mulher teria se recusado a eliminar os piolhos do cabelo da filha alegando que eles também eram seres vivos e que, por convicção, ela não mata seres vivos. Ainda de acordo com a reportagem, a mulher preferia pentear o cabelo da filha no jardim, para que os piolhos apenas caíssem e, assim, tivessem a mínima chance de sobreviver. A reportagem pode ser assistida no link que segue: clique aqui.

Realmente, não é preciso consenso da ciência, da filosofia, da religião ou mesmo da suprema corte para se afirmar que piolhos são seres vivos. Toda pessoa que já teve sabe o incômodo que eles provocam e como se multiplicam rapidamente, além da facilidade de transmissão de uma pessoa a outra. Para os professores, responsáveis e alunos de uma escola, os piolhos são sempre um problema, que é enfrentado com a ajuda de produtos farmacêuticos. Quem poderia imaginar um tempo em que uma mãe se colocaria em defesa dos piolhos? Quem poderia imaginar a preocupação dessa mãe em dar uma chance de vida aos piolhos, soltando-os no jardim da sua casa? Esse fato que parece irreal e ao mesmo tempo divertido surge num momento em que se discute, no Brasil, a ADPF 442, que prevê a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Mas qual a relação entre uma coisa e outra?

A relação está na inversão de valores e numa cadeia de interesses obscuros, num mundo onde as pessoas têm convicções humanas sobre o que não podem matar ou comer, enquanto outros defendem o direito de acabar com uma vida humana no ventre da mãe, simplesmente por considerá-la uma vida indesejada. Quem defende a vida de um piolho ou de qualquer outro animal não deveria defender com a mesma convicção a vida humana? Por que a defesa ambiental é tida como uma exigência para o bem da humanidade e a defesa da vida é vista como discurso religioso e fundamentalista? Neste mundo marcado pela inversão de valores, a única coisa que parece não ter valor é a vida daqueles que ainda não nasceram, que estão no ventre.

O Papa Francisco, na Carta Encíclica Laudato si, afirma que “o meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio de toda a humanidade e responsabilidade de todos”. O Papa chamou esse ambiente de “casa comum”. Cada país tem a própria legislação de proteção ambiental e, no caso do Brasil, essa regulamentação é feita pela Lei 9.605/98 - Lei de Crimes Ambientais. No capítulo quinto, sessão primeira, artigo 29, se encontra a descrição dos crimes e a pena, que pode ser de seis meses a um ano de detenção, além da multa. Um exemplo concreto: se uma pessoa subtrair, isto é, roubar, o ovo de uma tartaruga marinha, com embrião, essa pessoa pode ser presa e multada de acordo com a lei ambiental. Uma proteção justa da fauna e flora, com a qual devemos concordar.

Já no caso do embrião humano, a proposta em discussão pela ADPF 442 é outra. Primeiro, se questiona se é vida humana o que se desenvolve no útero de uma mulher. Em segundo, vem a proposta de permitir o aborto até a 12ª semana, descartando o embrião. Por que na “casa comum” parece que um ser humano em sua fase mais indefesa vale menos que a vida de outro ser humano ou menos que um ovo de tartaruga? Já vivemos tempos em que a natureza foi simplesmente explorada de forma indiscriminada. Por exemplo: baleias eram abatidas para tirar o óleo que servia para iluminar as cidades da Europa. Crescemos na consciência ecológica, mas infelizmente estamos regredindo na consciência humana. Crescemos na valorização dos direitos humanos, mas queremos escolher quem tem direito à vida. Vivemos uma triste realidade, uma crise da consciência e dos valores humanos. Essa crise exige o testemunho de fé dos cristãos, essa é a nossa esperança e missão.

Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba

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