A encíclica Centesimus Annus, do Papa João Paulo II, menciona duas hipóteses em que o mercado não funciona. "A primeira delas é o caso da procura insolvente: com essa expressão, designam-se aquelas necessidades das pessoas que não estão acompanhadas da correspondente capacidade aquisitiva, às quais nunca responderão, evidentemente, os mecanismos do mercado (CA 34a). A segunda é a dos bens coletivos, ou bens que não podem ser apropriados de forma exclusiva (o meio ambiente, por exemplo); por essa razão, ninguém está disposto a pagar por eles e, consequentemente, ninguém também quererá produzi-los (CA 40b)" (p. 199).
A encíclica também aponta reparos ao mercado. "Referem-se à concepção de liberdade que anima a sociedade atual: a liberdade econômica ganha uma prioridade tal que prejudica seriamente a liberdade integral. Noutra passagem anterior, já havia sido indicado o que ocorre quando se perde de vista que ’a liberdade econômica é somente um elemento da liberdade humana’ e ’o homem é considerado mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver’ (CA 39c) (pp. 199-200). É sobre esta inversão entre meios e fim que a Centesimus Annus chama nossa atenção.
Para a encíclica, o sistema democrático oferece poucas ressalvas morais (CA 46a), mas a concepção de liberdade está em jogo. "A falha consiste em que a liberdade é entendida como critério definitivo da verdade: isto é, não se reconhece nenhum tipo de subordinação a uma verdade objetiva que transcende a liberdade humana" (p. 200). "A democracia moderna parece exigir, diz a encíclica, o relativismo e o agnosticismo como atitudes fundamentais da mesma: a verdade, então, fica ’determinada pela maioria’ ou é ’variável segundo os diversos equilíbrios políticos’. É isto que a encíclica rejeita" (p. 201).
As duas ressalvas da Centesimus Annus ao capitalismo "dizem respeito à compreensão da liberdade e nos permitem descobrir como se entende a liberdade a partir do cristianismo: antes de mais, como liberdade obediente à verdade (o que exclui que a referida verdade seja o resultado da opinião de uma maioria); além disso, como liberdade integral (o que implica a não absolutização da dimensão econômica da existência e a não redução do homem a produtor-consumidor). Tal distorção da correta visão de liberdade tem reflexos no sistema político e no sistema econômico do capitalismo atual..." (p. 201).
A encíclica parece ter simpatia pelo modelo social-democrático. "O tom da passagem sugere que tem sido a melhor fórmula historicamente encontrada como forma de organização econômica e, no fundo, também política. No entanto, é necessário considerar outras afirmações do Papa. Em dois momentos importantes da encíclica, afirma-se categoricamente que a Igreja não oferece um modelo concreto" (p. 202). "O contributo da Igreja vai situar-se, portanto, preferencialmente no campo da antropologia: ela oferece uma visão do homem e de sua liberdade diretamente inspirada na Revelação" (pp. 202-203).
A Doutrina Social da Igreja "quase nunca fecha definitivamente caminhos, antes estimula a Igreja para que não desfaleça em sua busca incessante" (p. 205). É interessante ter presente que nós, crentes, "tenhamos que viver sempre de acordo com esta provisoriedade que a própria encíclica reconhece como bastante própria da interpretação cristã da existência (CA 25c), mantendo uma contínua tensão entre as exigências do Reino e a realidade imperfeita deste mundo (com suas ideologias que dão um recorde das dimensões essenciais do ser humano)" (p. 205). Aqui na terra, estamos de passagem. Deus nos quer na morada definitiva com Ele.
Pe. Antônio Carlos D’Elboux
Pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus
Saltinho – SP
Referência:
CAMACHO, Ildefonso. Cristãos na Vida Pública. Coimbra, Gráfica de Coimbra, sem ano.