Religião é um assunto que tem certa complexidade e, às vezes, é evitado porque pode provocar divisões e conflitos. De fato, ao longo da história, questões religiosas têm sido usadas como pretexto para iniciar e sustentar guerras e a separação entre povos. Mas é preciso compreender que o problema não está na religião, e sim na interpretação distorcida de alguns seguidores. A religião, isto é, a abertura do ser humano para uma experiência de natureza mística, é algo natural e universal. Nas mais diversas culturas e em diferentes épocas, estudiosos sempre encontraram algum tipo de expressão ou prática religiosa entre os povos. A religião é importante e oferece respostas para questões fundamentais como a vida, a morte, o bem, o mal, a esperança e a justiça.
O povo de Deus tem uma experiência religiosa marcada pela revelação de Deus que se dá a conhecer. Na Sagrada Escritura, essa experiência religiosa é descrita em dois momentos igualmente importantes. No período anterior a Abraão, Deus era conhecido através da contemplação da obra da Criação, pela luz natural da razão humana a partir das coisas criadas. No segundo momento, com o chamado de Abraão, teve início a revelação especial, que foi quando Deus fez a aliança que seria plenamente realizada com a vinda do Messias. Assim, o Antigo Testamento e o Novo se completam. “Por isso os cristãos leem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Esta leitura tipológica manifesta o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento.” (Catecismo da Igreja Católica, 129).
Como o povo de Deus depende da revelação para conhecer e vivenciar os preceitos divinos, é o próprio Deus quem estabelece o que está ou não de acordo com a religião. “Pela sua revelação, ‘Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele’. A resposta adequada a este convite é a fé.” (Catecismo da Igreja Católica, 142). No caminho de fé, foi Moisés quem ensinou ao povo as exigências da Lei: “Agora Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que, fazendo-o, vivais e entreis na posse da terra prometida pelo Senhor Deus de vossos pais” (Dt 4,1). Os decretos de Deus tratam essencialmente da vida e se traduzem em atitudes concretas de amor, serviço, fraternidade e misericórdia.
Na plenitude dos tempos, Deus enviou seu filho. Essa é a afirmativa que lemos na Carta aos Hebreus (Hb 1,2). O próprio Jesus vai dizer: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim revogar, mas cumprir” (Mt 5,17). O cumprimento da Lei não é uma nova fé, nem outros mandamentos ou tradições. Jesus, ao cumprir a Lei e os profetas, ensina que o mandamento do amor está no centro. Ao mesmo tempo, Ele aponta e acusa todas as formas de hipocrisia como distorções da verdadeira religião. A pureza ritual não é suficiente para justificar a fé em Deus. A Liturgia e os ritos são importantes porque reúnem a comunidade para celebrar, mas a religião não se encerra nesses atos. O culto litúrgico e ritual aponta para a vida, exigindo um testemunho que comprove a ligação entre a fé e a vida.
Isso nos leva a uma questão sempre atual, que é saber em que medida a fé que celebramos está impregnando e motivando as atitudes do cotidiano. Os fariseus do tempo de Jesus eram um grupo religioso observante da Lei e dos profetas, mas pouco atentos à realidade que os cercava. O farisaísmo religioso é um risco que sempre está por perto e pode assumir a aparência de piedade ou de devoção, mas não é. A religião autêntica, pura (Tg 1,27), se realiza em dois momentos distintos, mas igualmente importantes: a Liturgia e o serviço da caridade. Aquilo que é celebrado com piedade, zelo e cuidado, deve encontrar igual atenção e disposição no serviço, sobretudo aos mais pobres. Práticas religiosas que desconsideram essa relação, não são um louvor a Deus, são apenas preceitos humanos.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba