Essa pergunta não é retórica nem uma cortina de fumaça sobre as reações humanas. Ela nos confronta com o presente e com o que acontece ao nosso redor. Há uma tendência antiga do ser humano de transferir a culpa. Quando algo dá errado, o primeiro impulso é procurar o culpado fora de nós.
O livro do Gênesis narra essa dinâmica desde as origens. Após o pecado, Adão acusa Eva: “A mulher que me deste por companheira me deu do fruto, e eu comi” (Gn 3,12). Eva, por sua vez, transfere a culpa à serpente. Assim nasce a primeira cadeia de justificativas da história. Desde então, o coração humano carrega essa inclinação: é mais fácil construir explicações do que reconhecer o próprio erro. No fundo, negar a culpa é recusar a conversão.
Essa fuga da responsabilidade pessoal gerou, ao longo dos séculos, a figura simbólica do “bode expiatório” (cf. Lv 16). Alguém ou algo precisa ser responsabilizado para que o grupo se sinta em paz. É o mais antigo mecanismo de purificação coletiva, no qual projetamos nos outros as culpas que não queremos encarar. Essa lógica percorre as relações familiares, sociais e políticas — quando se transfere a culpa aos “outros”, aos “usuários” ou aos “sistemas”. É o mesmo gesto de Adão repetido em escala coletiva e, muitas vezes, ideologizada. A história mostra que, quanto mais uma sociedade recorre a bodes expiatórios, mais se afasta da verdade e do problema real.
Vivemos hoje um tempo em que essa dinâmica ganha formas sofisticadas e politizadas. Em vez de reconhecer o drama das escolhas pessoais, buscamos narrativas que nos absolvam. Recentemente, uma declaração pública reacendeu esse velho hábito de inverter responsabilidades. Ao afirmar que os agentes do tráfico seriam “vítimas dos usuários”, revelou-se algo maior do que uma opinião isolada. O discurso público se transforma num jogo de espelhos, onde ninguém é culpado e todos são vítimas. O vício, a violência, a corrupção — tudo parece culpa de alguém distante, mas nunca de quem participa do problema. Essa inversão moral cria um círculo vicioso: quanto mais se transfere a culpa, menos se transforma a realidade.
A sociedade cujos integrantes não assumem sua parcela de responsabilidade pela dor que produzem torna-se incapaz de solucionar seus problemas.
O Evangelho, porém, nos propõe um caminho diferente. Jesus não procura culpados, mas convida à verdade do coração. Diante da mulher adúltera, não há condenação cega nem fuga da responsabilidade: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7). Ele desmonta o tribunal das culpas alheias e devolve a cada um o espelho da consciência e da responsabilidade.
O perdão, em Cristo, não é negação do erro, mas reconhecimento humilde da própria fragilidade. Somente quem se reconhece pecador experimenta a misericórdia e se torna capaz de mudar. A autodefesa permanente é inimiga da conversão.
Assumir a responsabilidade é, portanto, o ato mais libertador da fé cristã. “A verdade vos libertará” (Jo 8,32) — não a verdade sobre os outros, mas a verdade sobre nós mesmos. O Evangelho chama o discípulo à maturidade moral e espiritual: deixar de procurar culpados e começar a agir com responsabilidade. Quando o ser humano reconhece sua parcela de culpa no mal do mundo, inicia-se o caminho da redenção.
A culpa, iluminada pela graça, transforma-se em arrependimento; e o arrependimento, em oportunidade de recomeço. Não há salvação sem responsabilidade, nem sociedade justa sem consciência pessoal. A verdadeira liberdade começa quando deixamos de acusar os outros e passamos a reconhecer nossa própria culpa. Esse é o caminho da conversão pessoal e da verdadeira mudança social.