Olhar objetivamente para um acontecimento exige dois movimentos interdependentes: afastar-se e aproximar-se. O primeiro permite suspender os julgamentos apressados, frequentemente influenciados por emoções ou crenças pessoais. O distanciamento abre espaço para enxergar o que está além da primeira impressão. A aproximação, por sua vez, conduz ao aprofundamento, pois possibilita o contato direto com o sentido real daquilo que se observa. Esses dois movimentos, ao se complementarem, revelam o que está por trás do fenômeno. Como afirmou Paul Ricoeur: “compreender é mais que captar uma informação; é entrar em relação com o sentido do que está diante de nós” (Interpretação e Ideologias). Logo, aplicar essa dinâmica à leitura da realidade contemporânea, especialmente aos fenômenos antropológicos, é essencial para compreender sua complexidade.
Quando se trata de temas ligados à pessoa humana, é preciso reconhecer que o ser humano não é um objeto plano, mas um mistério que se revela progressivamente, em camadas. A pessoa humana é liberdade, história, corpo e espírito. Compreender suas ações exige mais do que uma observação superficial; requer interpretação. O recente fenômeno dos bebês reborn, por exemplo, não é apenas uma tendência estética ou terapêutica, mas reflete inquietações mais profundas da sociedade. Trata-se de uma expressão simbólica de um comportamento mais amplo, que precisa ser examinado à luz da condição humana no contexto atual.
A história das bonecas acompanha a própria história da civilização. Desde as primeiras versões feitas de argila, madeira ou tecido, utilizadas em rituais religiosos, sociais ou pedagógicos, até os brinquedos contemporâneos, esses objetos refletem valores, costumes e visões de mundo. Com o tempo, tornaram-se expressões culturais e instrumentos de transmissão simbólica de comportamentos. A introdução de materiais como plástico e borracha no século XX, associada à produção em larga escala, transformou as bonecas em brinquedos populares. Ícones como a Barbie e a Emília, a boneca de pano popularizada a partir da obra de Monteiro Lobato, ilustram como esses objetos adquiriram significado nas narrativas sociais.
Nas últimas décadas, com a crescente busca por representatividade e diversidade, surgiram modelos que refletem diferentes etnias, corpos e realidades humanas. Nesse contexto, emergem também os bebês reborn: figuras hiper-realistas, inicialmente desenvolvidas para fins terapêuticos, que passaram a ocupar outros espaços, como o de colecionadores e da dramaturgia. No entanto, quando esses objetos começam a ser tratados como seres humanos — sendo alimentados, vestidos e cuidados como se sentissem dor ou fome — ultrapassa-se o campo simbólico e adentra-se uma zona de confusão entre o real e o imaginário. Como mostra Vanessa Veiga em artigo publicado na Revista Psicologia em Foco (2018), há um deslocamento do cuidado afetivo, antes dirigido a vínculos reais, para objetos que simulam presença.
A simples descrição do que são bebês reborn não esgota o fenômeno. É necessário questionar: por que adultos, aparentemente saudáveis, participam de encontros de “pais e mães” dessas bonecas? Por que autoridades públicas se veem obrigadas a regulamentar ou negar serviços a esses objetos? O que isso revela sobre a maneira como percebemos a realidade? De fato, estamos diante de um fenômeno que não é apenas cultural, mas também existencial. Ele aponta para um colapso da referência comum de realidade, substituída por um mosaico de subjetividades e vontades particulares, onde a distinção entre fantasia e verdade se torna cada vez mais tênue.
Desde o Iluminismo, a ideia de uma verdade objetiva e universal vem sendo progressivamente corroída. O que antes era compreendido como Lei Natural ou mandamento divino passou a ser tratado como imposição religiosa ou moralismo retrógrado. Consequentemente, com a exaltação da autonomia da vontade, a máxima “faça o que você quiser” tornou-se um lema ético e identitário na cultura contemporânea. Esse avanço do subjetivismo moral substitui a consciência formada pela vontade arbitrária, eliminado qualquer instância externa de discernimento, inclusive Deus. Afinal, o colapso da verdade leva inevitavelmente ao colapso da realidade.
O caso dos bebês reborn é um exemplo eloquente desse processo. Adultos, aparentemente em pleno uso de suas faculdades, escolhem cuidar de bonecas de silicone como se fossem crianças de carne e osso. Soma-se a isso a “cultura pet”, na qual animais de estimação ocupam lugares de filhos ou netos; há também pessoas que se identificam como pertencentes a outras espécies ou transitam entre múltiplos gêneros. Diante de tudo isso, a pergunta já não é mais “o que é real?”, mas “quem decide o que é real?”. Trata-se, portanto, de uma crise radical de sentido, na qual os limites entre o biológico, o simbólico e o subjetivo estão cada vez mais dissolvidos.
Esse colapso desafia diretamente a antropologia cristã. Perante tamanha fragmentação da identidade, a antropologia cristã propõe uma visão integrada do ser humano, como corpo, alma, razão e liberdade, unidos por uma origem comum e um destino transcendente. Como ensina Gaudium et Spes 22: “o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”. Ou seja, Cristo, o novo Adão, não é apenas o revelador de Deus, mas também o revelador do homem a si mesmo. O Filho de Deus não é uma ficção reconfortante, mas a Verdade encarnada que restitui o sentido pleno da existência humana: “a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontra no seu Senhor e mestre” (GS 10). Sem esta Verdade, o homem se desfigura; como afirmou Bento XVI: “a crise da cultura contemporânea é, antes de tudo, uma crise da verdade; quando se perde a referência à verdade, tudo se desmorona” (Discurso à Cúria Romana, 2010).
Portanto, a “adoção” simbólica de bonecas realistas, com quase um registro civil e cuidados simulados, sinaliza uma cultura que prefere o conforto da fantasia à exigência da realidade. Como escreveu o sociólogo Zygmunt Bauman, “na modernidade líquida, as relações são desfeitas com a mesma facilidade com que são criadas. O mundo torna-se um teatro de simulacros afetivos, onde o medo da perda é substituído pelo uso do descartável” (Amor Líquido, 2004). Além das relações, essa liquidez tem dissolvido os contornos da verdade, da identidade e da experiência comum do real. Quando tudo se torna possível — inclusive viver com bonecos no lugar de filhos reais —, percebe-se o quanto a verdade sobre o ser humano foi diluída até quase desaparecer.
Contudo, ao olhar para o ser humano à luz de Cristo, compreendemos que a verdade não é uma construção subjetiva, mas uma realidade recebida, à qual somos chamados a responder com liberdade e responsabilidade. A encarnação confere dignidade ao corpo e à história, resgatando-os da fragmentação e da imaginação contemporâneas. Assim, a liberdade não consiste em fazer tudo o que se deseja, mas em realizar-se no bem, no dom de si e na comunhão. Como ensinou São João Paulo II em sua Teologia do Corpo: "o corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino" (Audiência Geral, 20/02/1980).
A antropologia cristã não ignora o sofrimento humano, nem a busca por consolo, mas aponta para uma esperança verdadeira, não ilusória. A resposta cristã à confusão identitária e à substituição do real não é condenação, mas iluminação: oferece um caminho de retorno à verdade do ser, onde cada pessoa é chamada a existir como dom. A resposta a esse chamado, essa doação de si, supõe um encontro com a realidade tal como ela é, e não como gostaríamos que fosse.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba