A primeira homilia do Papa Leão XIV não foi apenas um gesto litúrgico inaugural, mas se apresenta como um sinal revelador da visão e da missão que ele deseja comunicar à Igreja e ao mundo. No dia 9 de maio de 2025, na Capela Sistina, o Papa iniciou sua fala evocando um dos versículos mais significativos da fé cristã: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). Partindo desta profissão de fé, sua homilia lançou luz sobre dois pilares fundamentais: a cristologia da Gaudium et Spes 22 e a eclesiologia do Corpo Místico de Cristo. Esses dois pontos delineiam as marcas identitárias da fé e o chamado à pertença eclesial, ganhando relevância e vigor neste início de pontificado.
Ao citar Gaudium et Spes 22 — “na realidade, o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado” —, o Papa Leão XIV situou sua visão da Igreja sobre um fundamento sólido e perene. Cristo não é apenas a revelação de Deus, mas também a revelação do homem ao próprio homem. Os olhos confiantes da criança, a mente vibrante do jovem e a fisionomia madura do adulto (cf. GS 22) compõem um caminho de humanização que só se realiza em comunhão com o Redentor. Em Cristo, a existência humana sai das sombras e entra na luz.
Essa perspectiva oferece uma resposta teológica à crise contemporânea de identidade. Em tempos nos quais o ser humano se perde em definições fluidas e desarraigadas, o Papa retoma o núcleo cristocêntrico do Concílio Vaticano II: a dignidade da pessoa humana está ancorada em Cristo. Nele encontramos não apenas um ideal, mas um modelo acessível e próximo, que “ultrapassa todos os nossos limites e capacidades”. Essa cristologia encarnada torna-se, assim, uma autêntica antropologia cristã, em que a identidade não é construída em oposição ao outro, mas na comunhão com o outro a partir de Cristo.
A segunda ênfase da homilia do Papa Leão XIV recai sobre a imagem da Igreja como Corpo Místico de Cristo. Trata-se de uma das expressões mais ricas da tradição católica, que une a realidade visível e espiritual da Igreja, vinculada pelo batismo. A pertença eclesial não é meramente sociológica ou moral: ela é sacramental. O vínculo do batismo nos configura a Cristo e nos insere em uma comunhão que precede qualquer afinidade cultural ou ideológica.
O Papa destacou que essa Igreja é “arca da salvação”, “cidade sobre o monte”, não por suas estruturas grandiosas, mas pela santidade de seus membros. Aqui se revela uma eclesiologia viva e missionária: uma Igreja que brilha não pelo poder, mas pela presença do Ressuscitado em seus membros. Na diversidade de dons e vocações, a unidade do Corpo não anula, mas integra as diferenças. A pluralidade na unidade aparece como uma riqueza a ser cultivada. Isso é especialmente significativo em um mundo fragmentado, onde a pertença muitas vezes é confundida com homogeneidade. O Corpo Místico de Cristo revela uma Igreja na qual cada membro tem um lugar insubstituível e onde a identidade cristã se confirma na comunhão mais ampla, reconciliadora e missionária.
A primeira homilia do Papa Leão XIV, marcada pela clareza teológica e pela sensibilidade pastoral, traz de volta dois temas urgentes para a Igreja de hoje: a redescoberta de nossa identidade em Cristo e a renovação do sentido de Corpo eclesial. Em um mundo de vozes fragmentadas, a voz do novo Papa ressoa com uma proposta de unidade na verdade e de comunhão na fé. Mais do que um discurso, suas palavras propõem um verdadeiro programa: um chamado para que cada um de nós redescubra quem é, olhando para Cristo, e a qual “lugar” pertence, vivendo a fé na comunhão da Igreja.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba