Em muitas famílias, há sempre aquela receita que passa de geração em geração — um bolo, um prato especial — e que se diz: "essa é tradição nossa". Com o tempo, os temperos podem variar levemente: um pouco mais de sal, um toque de açúcar a menos, uma especiaria a mais. Mas, se retirarmos ou adicionarmos algum ingrediente essencial, já não é mais a mesma receita. Ela se torna outra coisa. Assim também é com a fé cristã.
Quando Jesus subiu ao Pai, não nos deixou apenas palavras ou exemplos. Ele instituiu a Igreja e confiou aos apóstolos a missão de continuar sua obra. Entre eles, Pedro foi escolhido para presidir na caridade. Ao longo da história, essa missão não cessou: os apóstolos foram sucedidos por outros, formando a tradição apostólica, que chega até nós, bispos de hoje. Cada Papa é um elo dessa corrente ininterrupta. O sucessor de Pedro tem a missão de confirmar os irmãos na fé e de garantir a unidade da Igreja no mundo inteiro. Essa certeza de fé não se baseia apenas na lógica humana, mas na fidelidade de Deus, que nunca abandonou sua Igreja.
Se olharmos os pontífices mais recentes, vemos como o Espírito Santo continua a guiar a Igreja em tempos e contextos diversos. João XXIII, eleito para um breve pontificado, surpreendeu o mundo ao convocar o Concílio Vaticano II, continuado por Paulo VI, que conduziu a Igreja no difícil pós-concílio. João Paulo I, o "Papa do sorriso", esteve à frente da Igreja por apenas 33 dias, mas sua breve presença marcou pela simplicidade e ternura.
Em seguida, veio João Paulo II, uma figura marcante no cenário internacional. Enfrentou regimes totalitários, como o comunismo, foi presença constante nos grandes acontecimentos do século e aproximou a juventude do coração da Igreja ao instituir as Jornadas Mundiais da Juventude — um de seus grandes legados.
Bento XVI, teólogo refinado e homem de profunda espiritualidade, assumiu o pontificado com firmeza diante de desafios internos. Sua renúncia, gesto de grande humildade, revelou que ele não abandonou a Igreja, mas a entregou com confiança nas mãos de Deus. Foi então que o Espírito suscitou um Papa vindo "do fim do mundo", como ele mesmo disse: Francisco.
O Papa Francisco, com seu estilo simples e gestos surpreendentes, trouxe um novo frescor ao ministério petrino. Na sua primeira aparição na Praça de São Pedro, pediu que o povo rezasse por ele antes de conceder sua bênção. A primeira viagem que fez como Papa não foi a palácios ou centros históricos, mas à ilha de Lampedusa, onde muitas pessoas refugiadas haviam chegado — algumas apenas com vida, outras apenas com os corpos. Ali começou o seu caminho profético.
Sua linguagem simples e suas imagens fortes — "Igreja em saída", "hospital de campanha", "casa comum" — revelam um pastor atento às dores do mundo. Seus documentos marcaram o tempo presente: Evangelii Gaudium, sobre a alegria do Evangelho; Laudato Si’, sobre o cuidado com o planeta; Fratelli Tutti, sobre a fraternidade universal. Cada palavra do Papa Francisco foi uma convocação à conversão pastoral, à coragem de sair de si e ir ao encontro dos que sofrem.
Em 2023, durante a visita ad limina, ouvimos dele uma provocação que ressoa até hoje: "Jesus está batendo à porta. Mas precisamos saber: Ele está do lado de dentro querendo sair, ou do lado de fora querendo entrar?". Uma pergunta que nos obriga a rever se, como Igreja, não corremos o risco de impedir que Jesus esteja no centro.
Francisco foi também ousado nas suas reformas: confiou cargos importantes a leigos e mulheres, lembrando que, para muitas tarefas na Igreja, não se exige ordenação, mas competência e espírito de serviço. Alguns não entenderam essas mudanças, outros até resistiram. Mas o Papa, como bom pastor, conduziu a barca de Pedro com firmeza e misericórdia. E, como ele mesmo dizia, preferia uma Igreja ferida por sair ao encontro dos outros do que uma Igreja doente por viver fechada em si mesma. Ao longo dos seus doze anos de pontificado, Francisco nos ensinou que o Evangelho exige risco, escuta, fidelidade e audácia. A maneira como viveu e sentiu a Igreja foi, por si só, um testemunho eloquente.
Seus últimos dias também foram marcantes. Viveu sua própria Semana Santa antecipada: foi internado antes da Páscoa e, mesmo debilitado, ainda enviava mensagens e áudios. Deus, contudo, permitiu que sua páscoa pessoal acontecesse apenas depois da celebração da Ressurreição. No dia seguinte ao Domingo de Páscoa, o Papa Francisco partiu. Um sinal providencial: ele celebrou a paixão de Cristo com a Igreja e, então, retornou à casa do Pai.
Hoje, fazemos memória de sua vida e de sua entrega. Rezamos por ele, certos de que a sucessão continua e que o Espírito Santo nos conduzirá ao próximo pastor. A Igreja permanece firme quando está unida ao sucessor de Pedro. E nós permanecemos firmes quando seguimos essa mesma fé que, como uma boa receita de família, não pode perder seus ingredientes essenciais.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo da Diocese de Piracicaba