Vivemos tempos em que a palavra tolerância ganha destaque nas conversas sociais, políticas e religiosas. Porém, há um tipo de comportamento que cresce silenciosamente dentro das próprias comunidades de fé: uma intolerância seletiva, com a qual se perdoa com facilidade quem está fora, mas se julga com dureza quem está dentro.
Tolerância, em sua essência, é uma atitude de respeito e aceitação diante das diferenças. É reconhecer que o outro tem o direito de pensar, viver e se expressar de forma diversa, sem que isso ameace a minha identidade. Curiosamente, esse princípio tão necessário à convivência humana, que foi vivido e ensinado por Jesus, corre o risco de ser negado pelas atitudes dos discípulos.
A passagem do Evangelho de Marcos (9,38-40) revela um momento significativo, onde os discípulos repreenderam alguém que expulsava demônios em nome de Jesus, simplesmente porque “não andava com eles”. Jesus, porém, respondeu com sabedoria: “Não o proibais; quem não é contra nós é a nosso favor”. Aqui vemos o contraste entre o pensamento exclusivista dos discípulos e a amplitude de visão de Jesus, que reconhece a ação de Deus até fora dos círculos conhecidos.
Essa tensão entre exclusão e comunhão continua presente. Há quem tente defender a verdade de Cristo com uma atitude mesquinha, como se a Igreja fosse um clube privado onde só entra quem pensa igual. O zelo se transforma em ciúme. A defesa da doutrina se torna desconfiança. E o corpo eclesial, em vez de ser sinal de unidade na diversidade, torna-se campo de disputas internas, onde a uniformidade sufoca a comunhão.
É preciso discernir que uma coisa é combater o erro e o pecado – e nisso Jesus foi claro e firme –, outra é rejeitar a pessoa, negar-lhe espaço, condená-la sem misericórdia. Jesus foi intolerante com o pecado, mas infinitamente acolhedor com o pecador. Não fechou portas, nem levantou muros. Pelo contrário, construiu pontes e convidou à conversão.
No contexto atual, em que cristãos muitas vezes entram em disputas por detalhes litúrgicos, preferências pastorais ou visões políticas, a atitude de Jesus desafia todos os lados. A verdadeira fidelidade ao Evangelho exige firmeza na verdade, mas também abertura sincera à ação de Deus que atua fora dos nossos esquemas e das nossas preferências pessoais. Se a Igreja quiser ser sinal do Reino no mundo, precisa começar curando suas próprias feridas internas de intolerância. Afinal, como anunciar o amor de Deus ao mundo, se entre nós falta caridade?
A comunhão não é fruto da uniformidade, mas da capacidade de conviver com a diferença na mesma fé. Essa é a beleza da Igreja de Cristo: um só corpo, muitos membros (cf. 1Cor 12,12). E todo corpo adoece quando começa a atacar a si mesmo. Talvez hoje, mais do que nunca, sejamos chamados a deixar de lado os ciúmes espirituais e abraçar o horizonte aberto que Jesus nos ensinou. Porque, como Ele mesmo disse, quem faz o bem em Seu nome, ainda que fora do nosso pequeno grupo, já está, de algum modo, caminhando com Ele.
Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba